Geneticistas identificam uma menina que foi fruto de duas diferentes espécies humanas

Em um laboratório na Alemanha, uma pesquisadora ficou perplexa. A dúvida dela era: Seria aquilo, de fato, real? Os cientistas pensavam que nunca iriam encontrar algo assim, no entanto, é isto: esta garota nasceu de duas espécies totalmente diferentes. Aliás, quando os especialistas encontraram o verdadeiro significado daquela inquietante descoberta, eles perceberam que não havia como voltar atrás. A misteriosa menina e o nosso próprio passado nunca mais seriam os mesmos.

As chances de acharem uma prova disso? Mínimas, pensavam os especialistas. Então, aconteceu de alguns pesquisadores encontrarem um pequeno fragmento de osso em uma caverna na Sibéria. De início, a equipe nem notou que aquilo vinha de um hominini - termo este que faz referência a "todas as espécies consideradas humanas". Porém, uma incrível história começou a se desenrolar.

Apesar do osso ter permanecido oculto por anos, uma ousada pesquisadora acabou por achá-lo. Viviane Slon também foi com a cara e a coragem para tentar extrair o DNA do artefato e o que ela encontrou, bem, mudou décadas de pesquisa. Agora, temos alguns novos e significativos fatos a respeito de como foi a trajetória dos humanos antigos pelo mundo. De toda forma, por que aquele osso era tão importante?

Sabemos que várias espécies distintas passaram pela Terra e ficaram até mesmo ao lado dos humanos modernos. Contudo, essa descoberta em particular marcou a primeira vez que um híbrido direto foi encontrado. Estavam fazendo história ali, portanto, não é de se admirar que os pesquisadores tenham reagido com a maior animação às novidades.

Inclusive, existe uma fantástica história acerca da raça humana por trás desse fragmento de osso. Hoje, todas as pessoas pertencem à mesma espécie, Homo sapiens, a qual apareceu há aproximadamente 200 mil a 300 mil anos. Entretanto, nem sempre foi dessa maneira.

Os primeiros ancestrais humanos conhecidos foram os australopitecíneos. Essas diversas espécies eram capazes de escalar e andar sobre duas pernas. De acordo com algumas investigações, tais parentes distantes do Homo sapiens surgiram na África há mais de quatro milhões de anos. Evidentemente, eles seriam muito diferentes de como somos agora.

Os cientistas acreditam que, em seguida, as várias espécies do gênero Homo apareceram. No início, desenvolveram pernas mais longas, adequadas para correr e andar. Depois, seus cérebros começaram a crescer. Enfim, estas adaptações podem ter marcado uma mudança de comportamento, já que esses primeiros humanos passaram a caçar e seguir uma dieta mais carnívora.

Desse modo, cerca de 700 mil anos atrás, a espécie conhecida como Homo heidelbergensis surgiu na África e na Eurásia. Especialistas apontaram que esses homininis eram mais parecidos com os humanos modernos em sua aparência, estabelecendo as bases para a evolução de seus descendentes. Também, eles agiam de forma bastante diferente de seus predecessores.

Ao que tudo indica, o Homo heidelbergensis era mais inteligente do que todos aqueles que vieram antes. Eles, por exemplo, utilizavam complexas ferramentas e aperfeiçoavam suas técnicas de caça. Parece até que esses indivíduos se uniam para abater animais maiores, o que indica um certo grau de coesão social. Todavia, embora o Homo heidelbergensis possuísse muitos pontos fortes, a espécie ainda foi extinta.

Você deve saber, no entanto, que o Homo heidelbergensis não desapareceu da Terra sem deixar vestígios. Longe disso, na verdade. Por volta de 390 mil anos atrás, na época do Pleistoceno Médio, distintas espécies separaram-se desse ancestral comum. A partir destes ramos, os humanos modernos finalmente apareceram.

A história da humanidade trata-se de uma intensa e variada história evolutiva com diversas espécies de homininis que parecem ter coexistido lado a lado ao longo dos milênios. A propósito, eles não toleravam a presença um do outro. Faz um tempo, porém, que os pesquisadores acreditam no cruzamento entre esses diferentes grupos de humanos primitivos. De todo jeito, ninguém podia comprovar isso até, claro, a descoberta alemã.

Ainda que seja frequentemente dito que membros de diferentes espécies não podem cruzar com sucesso, isto está longe de ser um fato comprovado. Como Michael Marshall apontou em um artigo de 2018 da Forbes, apesar da mula e do burro nascerem estéreis por serem originados de um jumento e uma égua, o resultado de outras combinações pode variar de animal para anima

Aparentemente, tudo tem a ver com o DNA. Afinal, a mula, por exemplo, é fruto do cruzamento de uma égua, a qual possui 64 cromossomos, com um jumento, o qual tem 62 cromossomos. Assim, o descendente desses dois acaba com 63 cromossomos - um número ímpar - e isto gera algumas consequências. Até porque a reprodução sexuada é um tipo de reprodução que envolve a fusão de gametas, ou seja, necessita de um óvulo e um espermatozoide, cada um contendo 50% dos cromossomos do animal. Contudo, este número ímpar indica um código genético "defeituoso", de maneira que impede a reprodução da mula ou do burro.

Entretanto, algumas espécies de primatas, como gorilas e orangotangos, compartilham números idênticos de cromossomos. Alguns pesquisadores teorizaram, então, que poderia ser mais tranquilo para eles produzirem uma prole saudável. Existem até evidências de que os bonobos e os chimpanzés cruzaram em vários pontos ao longo da história deles.

O mais curioso é que essa teoria consegue explicar a razão de alguns grandes felinos serem capazes de cruzar com sucesso. O ligre, por exemplo, nunca ocorre na natureza, pois os habitats naturais dos leões e dos tigres são geralmente distantes um do outro. Todavia, vários zoológicos ao redor do mundo abrigam agora o fruto do cruzamento de leões e tigresas. Estas criaturas, quando estão na fase adulta, costumam ate ser maiores do que qualquer um de seus pais. Além disso, os ligres são férteis, podendo produzir seus próprios filhotes.

Acredita-se, portanto, que os primeiros humanos tenham compartilhado o mesmo número de cromossomos. Logo, diversas espécies foram capazes de cruzar. Tanto que os especialistas acham que o Homo sapiens cruzou com o Homo neanderthalensis pouco tempo após migrar da África e se espalhar pelo mundo.

Ou seja, é por isso que a maioria dos humanos modernos da Ásia e da Europa tem cerca de 2% de DNA neandertal. No entanto, o Homo sapiens não estava apenas ligado ao Homo neanderthalensis. Pelo visto, os humanos modernos também cruzaram com indivíduos de outro ramo da árvore genealógica humana. Eles eram chamados de denisovanos.

Os denisovanos são uma descoberta bastante recente no campo dos estudos evolutivos. A definitiva evidência de sua existência só veio à tona no século 21 quando uma equipe de cientistas do Instituto Max Planck anunciou, em 2010, os resultados de suas últimas pesquisas. Depois de analisarem um dente e uma falange encontrados nas montanhas do Altai, na Sibéria, eles acharam vestígios de uma nova espécie de humanos primitivos.

Satisfeitos com a grandiosa descoberta, os pesquisadores nomearam a espécie Denisova em homenagem à caverna onde os espécimes foram encontrados. Porém, além do que poderia ser interpretado pelo DNA, pouco se sabia a respeito desse ancestral humano. De qualquer modo, em 2012, uma investigação naquele mesmo local na Sibéria revelou outro pequeno fragmento de osso.

De início, os pesquisadores juntaram o material com inúmeros fósseis de animais que também foram recuperados daquela caverna. Somente anos mais tarde, quando Samantha Brown, da Universidade de Oxford, fez uma análise mais atenta, é que a verdadeira natureza da peça foi revelada. Ao catalogar os artefatos, Brown estudou as proteínas dentro daquele osso - e percebeu que ele vinha de um humano antigo.

Após isso, o osso passou para Slon, uma paleogeneticista. Para saber mais acerca daquele hominini, ela começou a investigar o DNA contido no fragmento e, ao fim, encontrou mais do que qualquer um esperava.

Bem, parecia que o osso não tinha nada demais. Com apenas 2,5 cm de comprimento, acredita-se que tenha sido de uma adolescente que possuía cerca de 13 anos de idade. Ao que tudo indica, ela morreu há aproximadamente 90 mil anos, quando os denisovanos povoaram este pequeno canto das montanhas do Altai.

Contudo, ao analisar o DNA mitocondrial do artefato, Slon teve uma enorme surpresa. Como qualquer pessoa com um grande interesse em genética sabe, este tipo de estrutura celular contém o material que uma criança herda somente da mãe. Dessa forma, a investigação indicou que a adolescente era descendente de uma mulher neandertal.

"Aquilo já era muito interessante", disse Slon à National Geographic em 2018. "Mas ficou ainda mais quando começamos a analisar o DNA nuclear". Como este material genético é passado através de linhas tanto masculinas quanto femininas, os cientistas conseguiram saber mais sobre o pai dessa antiga adolescente.

"Foi aí que percebemos que havia algo meio estranho nesse osso", continuou Slon. Na realidade, os resultados foram tão chocantes que ela estava inicialmente convencida de que tinha cometido um erro. Será que a paleogeneticista distorceu os dados sem se dar conta? Ou a amostra acabou sendo corrompida no laboratório?

Slon verificou, entretanto, que não havia erro algum ali. Embora a mãe da adolescente tivesse DNA neandertal, o pai dela, conforme a análise, era um denisovano. Aliás, não foi só isso. Enquanto analisava o fragmento ósseo, a paleogenetista também descobriu que a composição genética da garota era surpreendentemente variada como um todo.

A verdade é que tudo isso tem a ver com um conceito conhecido como heterozigosidade. Para simplificar, caso seus pais fossem parentes próximos - primos de segundo grau, por exemplo - a quantidade de heterozigosidade presente em seus genes seria relativamente escassa. Por outro lado, se você fosse fruto do cruzamento entre diferentes espécies, esses níveis seriam altíssimos.

O osso encontrado na caverna Denisova enquadrou-se definitivamente nesse último caso. À National Geographic, o biólogo computacional Richard E. Green explicou a respeito do antigo DNA: "É heterozigoto demais. É realmente isso que marca". Pois é, Slon havia descoberto algo muito importante em relação à evolução humana: uma criança nascida do cruzamento entre distintas espécies de primeira geração.

"Sabíamos, por pesquisas anteriores, que os neandertais e os denisovanos acabaram tendo filhos juntos em algumas ocasiões", declarou Slon em 2018 ao jornal londrino Evening Standard. "Todavia, nunca pensei que teríamos a sorte de achar uma descendente real dos dois grupos". Na Universidade de Harvard, o geneticista David Reich concordou.

"É incrível poder encontrar algo assim", expôs Reich à National Geographic. "Parecia improvável que conseguíssemos recuperar isto; um indivíduo o qual é de fato um híbrido de primeira geração". Além disso, a descoberta foi tão fortuita que levantou questões acerca do quão comum aquele cruzamento realmente era.

"É impressionante termos encontrado essa criança denisovana e neandertal entre aquele monte de sujeitos antigos cujos genomas foram sequenciados", comentou Svante Pääbo, do Instituto Max Planck, ao Evening Standard. "Neandertais e denisovanos podem não ter possuído tantas oportunidades de se encontrarem. No entanto, quando tiveram, eles provavelmente acasalaram com frequência - muito mais do que pensávamos antes".

Ainda que a descoberta possa ter sido um golpe de sorte, os pesquisadores consideraram outras explicações. Uma delas é que as duas espécies de homininis interagiam - e cruzavam - uma com a outra regularmente. Caso essa teoria seja verdadeira, ela viraria de cabeça para baixo toda nossa compreensão do mundo antigo.

Inclusive, o osso da adolescente - que foi apelidada de Denny - não é a única evidência que sustenta essa hipótese. Até 2018, os cientistas realizaram pesquisas genéticas em apenas 23 humanos antigos; um número relativamente pequeno. De qualquer maneira, mesmo dentro dessa reduzida amostra, pelo menos dois espécimes mostraram sinais de cruzamento entre espécies.

Por exemplo, o indivíduo conhecido como Oase 1. Identificado por seu maxilar inferior, acredita-se que esse membro da espécie Homo sapiens tenha caminhado pelo planeta por volta de 37 mil anos atrás. Porém, apesar de seu lugar um tanto recente na árvore genealógica humana, foi descoberto que ele carregava DNA neandertal.

A propósito, não estamos falando de um passado muito distante. Segundo um estudo publicado na revista Nature em 2015, os antepassados neandertais do Oase 1 podem ter vivido quatro a seis gerações atrás. Logo, de acordo com Pääbo, se o cruzamento entre espécies tivesse ocorrido somente esporadicamente, descobertas como esta deveriam ser raras.

Aliás, a investigação do Instituto Max Planck notou mais uma coisa em Denny. Ao que parece, o pai da adolescente também possuía DNA neandertal combinado aos genes denisovanos, sendo isto incrivelmente revelador. Conforme Pääbo, este fato "sugere que esses grupos, quando se encontravam, misturavam-se livremente".

Antes, inclusive, a maioria dos pesquisadores presumia que as interações entre esses diferentes grupos haviam acontecido poucas vezes. Então, como estes últimos avanços alteram nossa visão dos humanos antigos e de sua sociedade em evolução? Bem, à National Geographic, Reich esclareceu: "[Isso] transforma e muda qualitativamente nossa compreensão do mundo. É muito interessante".

Também, pode haver outras explicações em relação ao motivo pelo qual um híbrido de primeira geração apareceu em uma amostra de tamanho tão limitado. Na opinião de Green, cavernas como a das montanhas do Altai podem ter sido populares pontos de encontro para os humanos antigos, trazendo uma amostra polarizada à equação. À National Geographic, o especialista contou: "Elas podem ter sido bares para solteiros do Pleistoceno da Eurásia".

Contudo, será que foi só a proximidade que instigou os denisovanos e os neandertais a cruzarem? Ou havia algo mais em jogo? Segundo Katerina Harvati-Papatheodorou, da Universidade de Tübingen, essas interações entre espécies podem ter constituído uma peça fundamental da sobrevivência. À New Scientist, a acadêmica explicou: "Os grupos humanos eram muito pequenos e vulneráveis a uma drástica mortalidade".

Portanto, à medida que mais informações surgem, os cientistas esperam resolver alguns dos mistérios que há muito intrigam aqueles que estudam a evolução humana. Desse modo, será que os denisovanos e os neandertais entraram em extinção assim que o Homo sapiens apareceu? Ou eles simplesmente se juntaram à espécie dominante? Em uma entrevista à New Scientist, Joshua Akey, da Universidade de Princeton, admitiu que, embora estejamos bem longe de uma resposta definitiva, o DNA de Denny aponta para a segunda dessas suposições.